A banalidade do mal

Cármen Lúcia é jurista, professora e ministra do Supremo Tribunal Federal

Por Úrsula Vidal

Em 1964, uma das maiores pensadoras do século XX, Hannah Arendt, concedeu uma entrevista ao jornalista, diplomata e político Gunter Gaus, apresentador de um famoso programa de televisão, na Alemanha. Gaus inicia a conversa revelando que ela era a primeira mulher a sentar diante das câmeras da série. O que acontece depois nos diz muito sobre este breve prólogo. Ao afirmar que Arendt exerce uma “profissão muito masculina”, ele pergunta se ela não acha insólito seu lugar no círculo dos filósofos, pelo fato de ser mulher.

Ela não só não se reconhece como filósofa – pois se entende praticante de uma teoria política – como declara nunca ter sido adotada por tais círculos, aos quais faz uma leve crítica, ao identificar o que chamou de “hostilidade” entre a maioria dos filósofos e a política, seu material de investigação. Essa mesma onde exercemos formas de representação e cidadania; onde criamos enquadres sociais, culturais e morais para definir nossos direitos e deveres. Essa mesmíssima, ainda, que elege democraticamente figuras capazes de erguer muros diplomáticos e campos de concentração.

Noves fora o incômodo pelo apagamento de pensadoras que àquela época (e já muito antes) formulavam, mas pouco publicavam; lecionavam e teorizavam mas não frequentavam os clubes de notáveis, me chamou atenção neste trecho da entrevista a sinceridade de Arendt – uma filósofa que entregou ao mundo o estudo mais profundo e corajoso sobre as causas, efeitos e dinâmicas do totalitarismo -, ao admitir ter internalizado a crença de que uma mulher dando ordens é muito mal vista socialmente. E ela se protegeu deste lugar, desta crítica.

Quantas vezes nós, mulheres, renunciamos ao poder, ao protagonismo e à liderança por medo deste julgamento? E quando uma de nós rompe a barreira do temor e se lança no terreno lodoso e movediço do poder _ porque precisamos estar lá_, sentimos orgulho, inveja ou desprezo?

A Ministra Carmen Lúcia tem sido uma das vozes mais eloquentes na crítica à desigualdade de gênero, no Brasil. Em uma fala lapidar, a Ministra agudizou a questão trazendo o estarrecedor numero de 20 milhões de notificações de violência contra a mulher, apenas em 2024; uma guerra contra as mulheres. Guerra que fez 10 vítimas de feminicídio, no Rio Grande do Sul, só no último feriado prolongado. E ela nos provoca com sua inteligência e lucidez ofuscantes: “ somos aquelas de quem todo mundo é a favor, desde que não ocupe o lugar que eu acho que é meu”. Carmen Lucia segue fazendo um apelo às mulheres: “Somos a maioria, quem tem que mudar somos nós mesmas. Ninguém vai mudar por nós. Não esperem pelos homens.” Até porque, a maioria deles está confortavelmente instalada, não raro, tomando decisões egoístas e mesquinhas, vendendo aos interesses do capitalismo mais selvagem o futuro dos nossos filhos, dos nossos netos e da civilização humana. Como diria Hannah Arendt: rendendo-se à “banalidade do mal”.

Úrsula Vidal é jornalista, cineasta e ambientalista. Desde 2019 é secretária de estado de cultura do Pará.

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