Tecnofeudalismo e Poder Simbólico

Ao fragmentar o espaço público em bolhas, as Big Techs enfraquecem o diálogo e reforçam a polarização.

O conceito de tecnofeudalismo proposto pelo economista grego Yanis Varoufakis, apresenta uma análise disruptiva sobre como as dinâmicas de poder econômico e social estão se reorganizando em escala global. Nesse modelo, as Big Techs – gigantes da tecnologia como Google, Amazon, Meta e outras – assumem o papel de senhores feudais digitais, controlando plataformas, dados e as relações sociais mediadas por elas. Não somos proprietários desses “territórios” etéreos, apenas pagamos para usá-los.

Nos anos 1980, o filósofo Pierre Bourdieu já nos alertava para os efeitos do poder simbólico, um tipo de dominação invisível que depende da cumplicidade e do reconhecimento dos dominados. Cruzando essas duas perspectivas, podemos compreender como o tecnofeudalismo se constrói não apenas pelo controle econômico, mas também pela manipulação simbólica, com profundos impactos sobre as democracias contemporâneas e o fortalecimento de tendências autoritárias.

No tecnofeudalismo, as plataformas digitais não apenas oferecem serviços, mas criam um ecossistema onde usuários, empresas e instituições tornam-se dependentes de suas infraestruturas. Diferentemente do capitalismo clássico, onde a concorrência é central, as Big Techs operam como monopólios ou oligopólios, estabelecendo “feudos digitais” com limites quase intransponíveis, mas ignoram as fronteiras reais porque operam em escala global. Elas não vendem apenas produtos; controlam os meios pelos quais interagimos, trabalhamos, consumimos e até votamos. Esse controle das plataformas é, em si, uma forma de poder econômico, mas não seria suficiente para manter sua hegemonia sem o poder simbólico.

Bourdieu nos ajuda a entender que o poder simbólico das Big Techs consiste em fazer com que sua dominação pareça natural, inevitável e até desejável. A ideia de que essas empresas “conectam pessoas”, “democratizam a informação” ou “facilitam a vida” encapsula um discurso poderoso que mascara os interesses econômicos e políticos que elas representam. As Big Techs utilizam narrativas cuidadosamente elaboradas para justificar sua posição privilegiada, transformando seus monopólios em algo legitimado por seus usuários – que muitas vezes ignoram os custos sociais, como a vigilância massiva ou a concentração de riqueza.

O impacto desse modelo sobre as democracias é profundo. Em primeiro lugar, o controle dos dados pessoais permite que essas empresas influenciem os processos democráticos de maneira sem precedentes. A ponta desse iceberg foi o escândalo da Cambridge Analítica, que interferiu no resultado até mesmo do plebiscito que tirou o Reino Unido da União Europeia. Plataformas como Facebook e Twitter (agora X) foram palco de campanhas de desinformação em eleições recentes, demonstrando como dados podem ser usados para manipular a opinião pública. Esse tipo de manipulação explora as vulnerabilidades dos sistemas democráticos, que dependem de uma esfera pública informada e plural. Ao fragmentar o espaço público em bolhas de filtro, as Big Techs enfraquecem o diálogo democrático e reforçam a polarização.

Além disso, o tecnofeudalismo subverte os mecanismos tradicionais de governança. Governos nacionais frequentemente se mostram incapazes de regular essas empresas, que operam em múltiplas jurisdições e possuem orçamentos superiores ao PIB de muitos países. Essa assimetria de poder enfraquece as instituições democráticas, que perdem capacidade de proteger os direitos dos cidadãos frente às práticas das corporações tecnológicas. Nesse contexto, as Big Techs tornam-se quase “autoridades supranacionais”, exercendo um poder de fato que não foi delegado democraticamente.

Ao enfraquecer as democracias, o tecnofeudalismo cria terreno fértil para a ascensão de ideologias totalitárias. Governos autoritários frequentemente se valem das mesmas tecnologias para consolidar seu poder, utilizando vigilância em massa, censura digital e manipulação da informação. A Hungria, por exemplo, governada pelo ultradireitista Viktor Orbán, implementou um sistema de crédito social baseado em dados coletados digitalmente, estabelecendo um controle social sem precedentes. Embora esse exemplo seja extremo, ele ilustra como a tecnologia, quando controlada por interesses autoritários, pode ser usada para restringir liberdades individuais e sufocar dissidências.

Entretanto, mesmo em democracias, a acumulação de poder pelas Big Techs cria dinâmicas similares. A vigilância constante, legitimada por discursos sobre segurança ou personalização de serviços, normaliza práticas que ameaçam a privacidade e a autonomia dos indivíduos. Ao mesmo tempo, o monopólio sobre a infraestrutura digital dá a essas empresas poder de censura, permitindo que determinem quais vozes podem ou não ser ouvidas. Essa combinação de vigilância e controle sobre a informação aproxima o tecnofeudalismo da lógica autoritária, mesmo em regimes democráticos.

Para enfrentar os desafios impostos pelo tecnofeudalismo, é necessário mobilizar tanto soluções políticas quanto simbólicas. Do ponto de vista político, a regulação das Big Techs seria um passo fundamental. Isso inclui políticas antitruste para quebrar monopólios, leis de proteção de dados mais rígidas e mecanismos de governança internacional que limitem o poder dessas corporações. No entanto, essas medidas só terão sucesso se forem acompanhadas por uma conscientização coletiva sobre os efeitos do poder simbólico.

É fundamental desnaturalizar o discurso que apresenta as Big Techs como “neutras” ou “benéficas”. Isso exige um esforço pedagógico e cultural para questionar as narrativas hegemônicas e construir alternativas. Redes sociais descentralizadas, plataformas de código aberto e iniciativas comunitárias podem oferecer caminhos para enfrentar a lógica do tecnofeudalismo. Mais importante ainda, é resgatar o papel do Estado e da sociedade civil como guardiões do bem comum, em oposição à lógica privatista das plataformas digitais.

O tecnofeudalismo e o poder simbólico se entrelaçam para criar um modelo de dominação que vai além da economia, afetando profundamente a cultura, a política e a vida social. Ao explorar as fragilidades das democracias, as Big Techs consolidam um poder quase absoluto que ameaça os valores democráticos e abre espaço para ideologias autoritárias. Enfrentar esse desafio requer não apenas ação política, mas também uma transformação cultural, que desnaturalize as narrativas de dominação e recupere a autonomia dos indivíduos e das comunidades frente ao poder tecnológico. A crise do feudalismo na Europa ocidental marcou o fim da Idade Média. A derrocada do tecnofeudalismo demarcará o fim da Idade Mídia.

Chico Cavalcante é jornalista, escritor e gestor de marketing

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