Raio-x de um império do latifúndio na Amazônia

A reportagem que latifundiários da Amazônia não querem que você leia

Uma poderosa família de latifundiários na Amazônia não quer que você leia esse texto. Eles não querem que você saiba que estão sendo investigados por graves crimes, fraudes, corrupção e formação de milícias. A família Zamora conseguiu censurar duas reportagens do Intercept Brasil, mas não conseguiu escapar de uma grande investigação da Polícia Federal que veio depois. E é com base nessas novas revelações, disponíveis publicamente em documentos judiciais, que fazemos essa reportagem, que reforçou o interesse público das atividades da família e da controvérsia envolvendo a disputa pela posse da fazenda. 

Os Zamora têm a posse da Fazenda Palotina, que é maior do que cinco capitais brasileiras. O pai Sidnei, Isabella Zamora e o irmão dela, Sidney Zamora Filho, são investigados por suspeitas de fraude, corrupção de agentes públicos, lavagem de dinheiro, desmatamento e formação de milícias com uso de forças policiais para ameaçar e atacar os sem-terra que vivem no acampamento Marielle Franco, dentro da área da fazenda, de acordo com o relatório da PF.

A Fazenda Palotina é encravada em uma das áreas mais violentas da Amazônia. O Intercept foi proibido pela justiça do Acre de contar uma parte da história. Mas não paramos de investigar. Agora, obtivemos documentos sigilosos que mostram, pela primeira vez, as entranhas e jogos políticos por trás de uma das disputas mais violentas da região amazônica. 

Um relatório de movimentações financeiras anexado à investigação da Polícia Federal expõe um  raro registro do fluxo de dinheiro dentro de um poderoso grupo do agronegócio, inclusive com saques e depósitos envolvendo agentes públicos. Também mostra o histórico de desmatamento da área, que tem valor estimado de R$ 68 milhões – assim como as manobras jurídicas do patriarca Sidnei Zamora para conseguir a propriedade do latifúndio.

Um dos episódios considerados suspeitos pela PF, por exemplo, foi um saque de R$ 75 mil feito por Isabella, filha do patriarca Sidnei Zamora. Ela não costumava sacar dinheiro em espécie, mas abriu uma exceção no dia 21 de novembro de 2019. Dias antes, a família Zamora havia conseguido um esperado documento do Incra que reconheceu a posse da Fazenda Palotina.

O responsável pelo reconhecimento da posse da fazenda foi o superintendente do Incra no Amazonas na época, João Batista Jornada, que havia se reunido com Zamora alguns meses antes. Em junho de 2020, Jornada usou R$ 37.990 em dinheiro vivo para dar entrada na compra de um carro. 

“Esse saque pode ser interpretado como um possível indicativo de pagamento de propina, especialmente considerando o contexto, o timing das ações e a compra do veículo”, diz o relatório da Polícia Federal.

Trecho do relatório da Polícia Federal que menciona saque de R$ 75 mil (Foto: Reprodução)

Procurado pelo Intercept, o advogado dos Zamora, Marcelo Zamora, afirma que a família “é investigada há um ano, sem conclusão, sobre a prática de delitos não comprovados”, que “todos os negócios praticados pela família Zamora e, notadamente, por Isabella Zamora, são legítimos, declarados e legais” e que “os processos sempre correram de acordo com a devida competência processual”. Leia aqui a resposta completa

Como envolve informações sigilosas, como as movimentações financeiras do clã, composto de latifundiários poderosos da fronteira do Amazonas com o Acre, o processo originário corre sob segredo de justiça. Alguns documentos, no entanto, encontram-se disponíveis para acesso público no sistema do TRF-1.

O pai Sidnei, Isabella e o irmão dela, Sidney Zamora Filho, são investigados por suspeitas de fraude, corrupção de agentes públicos, lavagem de dinheiro, desmatamento e a formação de milícias com uso de forças policiais para ameaçar e atacar os sem-terra.

Foto postada por Sidney Zamora Filho, com o pai Sidnei Zamora, em sua conta no Instagram no dia 14 de agosto de 2022 (Foto: Instagram/Reprodução)

Zamora Filho chegou a ter sua prisão decretada e ficou foragido, até que sua defesa conseguiu um habeas corpus, que substituiu a prisão preventiva por medidas cautelares e manteve outras restrições, como recolhimento domiciliar noturno. Ele também está sendo monitorado por tornozeleira eletrônica. A sua defesa tentou derrubar, sem sucesso, essas outras medidas cautelares. Outros agentes públicos também são investigados. 

A Polícia Federal estima que as atividades de pecuária na Fazenda Palotina, na cidade de Lábrea, no Amazonas, resultem em uma renda líquida anual de R$ 2,26 milhões. Só que a área, segundo o Incra, pertence à União. No local fica a comunidade Marielle Franco, formada por mais de 200 famílias que vivem da extração da castanha.

Polícia Federal estima que atividades de pecuária na Fazenda Palotina resultem em uma renda líquida anual de R$ 2,26 milhões (Foto: Reprodução)

A família Zamora diz que os sem-terra são os invasores. “Ao longo de mais de nove anos de invasão ilegal e clandestina, a família Zamora sempre se apoiou e acreditou na Justiça, nunca tendo utilizado qualquer tipo de ataque violento a quem quer que seja”, disse o advogado dos Zamora. “Sidnei Filho nunca tentou expulsar intrusos com ameaça. Quando deparado com 20 invasores armados dentro de sua posse mansa e pacífica, utilizou-se do meio necessário e proporcional para a legítima defesa sua e de seu pai, idoso de 75 anos, realizando apenas um disparo para cima”, disse o advogado da família, afirmando que a decretação da prisão foi “desproporcional, tanto é que foi revogada”.

Os documentos da Polícia Federal, no entanto, mostram de forma detalhada o histórico de ocupação da área, que foi desmatada ilegalmente, e as sucessivas manobras para que Zamora tivesse sua propriedade reconhecida – que culminaram nas reuniões com o superintendente do Incra durante o governo de Jair Bolsonaro. E revelam, sobretudo, os jogos de poder de uma família que, com boas relações no meio político, policial e jurídico do Acre e do sudoeste do Amazonas, vinha conseguindo usar em seu favor o aparato do estado.

relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, anexado à investigação encontrou uma teia de 51 comunicações de operações suspeitas, que envolvem 687 pessoas. Ao todo, o grupo inteiro movimentou mais de R$ 193,7 milhões em cinco anos, entre janeiro de 2019 e abril de 2024. Além de saques em dinheiro, foram encontradas transações de altos valores entre policiais e empresas, empresários e fazendeiros. 

Relatório da PF detalha operações sob suspeita (Foto: Reprodução)

A análise das movimentações indica que os Zamora dificilmente usavam dinheiro em espécie para fazer pagamentos a fornecedores e funcionários. Mas algumas exceções chamaram a atenção. A interpretação dos investigadores é que essas movimentações em dinheiro vivo teriam como objetivo fazer transações fora do sistema financeiro para ocultar os destinatários.

Os resultados parciais da investigação serviram de base para que a Justiça Federal no Amazonas concedesse, por solicitação do Ministério Público Federal, uma série de pedidos de busca e apreensão em endereços ligados à família no estado, no Acre e em São Paulo.

A primeira movimentação que chamou a atenção foi o saque de R$ 75 mil feito por Isabella Zamora em novembro de 2019. Meses antes, em junho de 2019, segundo o relatório da PF, o patriarca Zamora se reuniu com Jornada em um encontro organizado pelo advogado Antonio Carlos Carbone, ex-procurador do Incra durante a ditadura militar e antigo secretário de Desenvolvimento Agrário do Acre. 

Meses depois, João Batista Jornada assinou um ofício reconhecendo a “posse da área da Fazenda Palotina” em nome de Sidney Sanches Zamora, filho de Sidnei.

A sonhada posse da Fazenda Palotina: ofício de novembro de 2019 para ‘ser apresentado aos órgãos competentes e divulgado irrestritamente’ (Foto: Reprodução)

O superintendente se baseou em um parecer antigo, de 2007, e outros documentos que já haviam sido derrubados. Para os investigadores da PF, a decisão de Jornada não tem amparo legal por contrariar decisões judiciais e de outras autoridades acima dele, que apontavam a irregularidade da posse. Apesar disso, o documento foi usado em processos de usucapião que tramitavam na justiça do Amazonas.

SAQUES PRECEDERAM ATAQUES VIOLENTOS NA FAZENDA PALOTINA

O território da fazenda em que fica a comunidade Marielle Franco, segundo o Incra, pertence à União. Mas os Zamora reivindicam a posse da terra e já denunciaram os sem-terra por invasão. Nos últimos dois anos, a violência no local se intensificou, com denúncias de ameaças e tortura contra os extrativistas, mostra o relatório da Polícia Federal.

Outro saque suspeito de Isabella, de R$ 200 mil, foi feito justamente dois meses antes dos relatos de ataques contra os extrativistas. Os sem-terra afirmaram ter sido alvo de tiros e ameaças em dezembro de 2023.

A PF faz menção a três situações de violência. Na primeira, no dia 6 de dezembro de 2023, cita que Zamora e Zamora Filho foram ao acampamento, com outros homens armados, e discutiram com os moradores. Na semana seguinte, no dia 15, os moradores relataram ter ouvido diversos disparos de armas de fogo, ainda segundo a Polícia Federal. 

Outra situação descrita pela PF aconteceu no dia 29 de fevereiro de 2024. O Intercept publicou duas reportagens sobre o caso, que foram censuradas por determinação da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Acre. Leia mais sobre a censura aqui

Na véspera desse episódio, houve outra movimentação financeira considerada suspeita pela PF. O policial penal do Acre Francisco Maurene Rocha de Menezes fez um depósito de R$ 50 mil em contas da família Zamora. Em menos de dois anos, ele realizou cinco depósitos que somaram mais de R$ 355 mil. 

O valor equivale a 50 vezes o salário dele. Não foi encontrada nenhuma justificativa. Para a PF, os depósitos são “algo totalmente ilógico, salvo que Francisco possa ser um elo policial, de milícia privada, com a família Zamora”.

Relatório da Polícia Federal destaca proximidade entre saques e denúncia de tortura (Foto: Reprodução)

O último depósito suspeito feito por Menezes, de R$ 92,5 mil, foi efetuado em março de 2024, oito dias antes de uma polêmica decisão de reintegração de posse dada por um juiz de primeira instância da justiça estadual do Amazonas. A sentença, fora de sua área de jurisdição em favor do fazendeiro, foi suspensa dias depois pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, que considerou que os trâmites normais não foram respeitados.

Apontado como líder das operações violentas contra os extrativistas, Zamora Filho teve sua prisão preventiva decretada em setembro de 2024 e permaneceu foragido por cerca de dois meses. Depois de ter um recurso rejeitado, ele teve a prisão preventiva substituída por medidas cautelares, com algumas restrições, durante o Plantão Judiciário, graças a uma decisão do desembargador Ney Bello.

No pedido de revogação de sua prisão, Zamora Filho alega que, no dia que teria acontecido o ataque, ele estava incomunicável porque teria viajado, em um avião de carreira, para Porto Seguro, na Bahia, junto da esposa, Atenéia Paludo, para um casamento em Trancoso. A defesa anexou comprovantes do voo, do aluguel de um carro e do hotel, além de fotos do casal na festa.

O gerente da fazenda, Lucas de Assis Pereira – que trata Zamora Filho por “patrão” –, também foi alvo das buscas. Ele é suspeito de intermediar as relações entre o fazendeiro e os policiais que faziam parte do grupo que atacava os extrativistas.

Foto postada por Sidney Zamora Filho em sua conta no Instagram no dia 19 de agosto de 2020 (Foto: Instagram/Reprodução)

As movimentações do subtenente da PM do Acre Jorge Lourenço de Freitas Filho também chamaram a atenção. Entre maio e novembro de 2023, ele movimentou R$ 3,57 milhões, pouco mais da metade deles em créditos e a outra parte em débitos. 

Os recebidos somaram R$ 1,16 milhão, dos quais R$ 493 mil tiveram origem em sua mãe, a aposentada Izabel Medeiros de Freitas, o que faz os investigadores acreditarem que tenha sido uma maneira de ocultar a origem do dinheiro. 

O restante do dinheiro recebido pelo PM veio de sete empresas ou empresários e quatro pecuaristas – entre eles Isabella Zamora, que movimentou R$ 110 mil. Um outro policial também aparece com destaque nas transações, mas a PF não chegou à relação dele com os outros investigados, segundo o relatório.

Jorge chegou a entrar com um habeas corpus no TRF-1 para tentar a sua exclusão do inquérito. No pedido, sua defesa afirmava que o subtenente nunca esteve na Fazenda Palotina, “onde teriam ocorrido, em várias datas, conflitos agrários envolvendo supostos capangas do senhor Sidnei Zamora”. 

Sobre a movimentação financeira apontada pelas investigações, o militar alegava ter sido “decorrente da compra de reses para abate, com recursos financeiros de sua mãe”. Relator do caso, o desembargador Marcos Augusto de Sousa decidiu pela manutenção das investigações.

Zamora tenta há décadas regularizar a área – com sucessivas derrotas

O relatório da PF se debruça também na história de posse da Fazenda Palotina, área gigantesca cujo tamanho é difícil de precisar. Ao Sistema Nacional de Cadastro Rural, Zamora, o autodeclarado proprietário, informa que são 28 mil hectares. Já ao Sistema de Cadastro Ambiental Rural, a medida foi de 40,7 mil hectares. Em um terceiro documento, a propriedade aparece com 36 mil hectares.

De todo modo, na medida mais modesta, a propriedade é maior do que cinco das 27 capitais brasileiras: Recife, João Pessoa, Aracaju, Natal e Vitória. Nas outras medidas, o terreno chega a ter uma extensão maior que Fortaleza e Belo Horizonte.

Zamora tenta regularizar a área há pelo menos 26 anos. E há décadas a legitimidade da posse é questionada em sucessivas investigações e cancelamentos de registro. A irregularidade também é citada na CPI da Ocupação de Terras Públicas da Amazônia, cujo relatório final foi apresentado em 2001, além das investigações atualmente em curso.

A perícia da Polícia Federal aponta a Fazenda Palotina como uma parte do antigo Seringal Natal ou Novo Natal, que tinha uma área de 155,9 mil hectares e estava registrado em nome da empresa Sebastião Dantas e Cia. A entrega do terreno para a empresa está baseada numa decisão de um juiz estadual datada de 1965, sem qualquer registro de seu tamanho.

fonte: Blog do Gerson / Intercept Brasil

A seguir leia