‘Precisamos de uma reforma agrária integral e popular para mudar a sociedade’, diz senador colombiano

Robert Daza destacou que a eleição do primeiro presidente de esquerda no país foi resultado de esforços de movimentos

O senador Robert Daza não pode circular por todos os lugares da Colômbia. Ele evita, por exemplo, voltar ao lugar onde nasceu, na coelheira do estado de Nariño. O congressista é alvo de grupos paramilitares que coagem lideranças camponesas no país. O congressista, no entanto, entende que há um caminho em construção que vai ajudar a resolver o problema da violência no interior colombiano: a reforma agrária

Daza recebeu a equipe de reportagem do Brasil de Fato em uma cafeteria em Bogotá. Mesmo em meio a uma tensão política que envolve o país, ele não tem problema em dizer que a direita foi responsável por 200 anos de gestões que aprofundaram as desigualdades e promoveram uma concentração das terras colombianas. 

A violência tem marcado a vida dos camponeses há décadas. Segundo relatórios da Unidade para as Vítimas e do Museu Casa de la Memoria, mais de 50% das vítimas de homicídios na Colômbia são camponeses. O grupo representa também mais de 45% dos deslocados do país. 

Integrante do Coordenador Nacional Agrário (CNA), um dos maiores movimentos de luta pela reforma agrária na Colômbia, Robert Daza entende que a gestão de Gustavo Petro teve avanços, mas que ainda faltam medidas mais duras para concretizar um novo modelo de gestão das terras no país. 

Os cálculos do movimento camponês indicam que é necessária uma redistribuição de mais de 15 milhões de hectares no país, entre terras improdutivas, usadas para o cometimento de crimes e com propriedade irregular. Nos últimos 3 anos o governo conseguiu avançar com a redistribuição de apenas 500 mil hectares. Parte disso se deve, na avaliação de Daza, a uma grande força da direita colombiana, especialmente nos espaços de decisão, como o Legislativo. 

O senador entende que a reforma agrária no país não pode se limitar a uma redistribuição de terras, mas deve ser incorporada em uma política que tenha o camponês no centro das discussões. 

“Quando dizemos reforma agrária integral e popular, quer dizer que, junto com a terra, o Estado colombiano deve garantir todos os apoios necessários à produção de alimentos. A soberania alimentar tem que se tornar realidade de mãos dadas com a reforma agrária. De mãos dadas com isso, têm que vir políticas de apoio à produção camponesa”, afirmou ao Brasil de Fato.

O apoio a que ele se refere é uma demanda dos movimentos camponeses em diferentes frentes: para produção, comércio e transformação, pelos próprios camponeses, o que implica fomentar e fortalecer a organização camponesa. Um dos empecilhos para isso tem sido a direita colombiana.

O presidente Gustavo Petro fez alianças com setores social-democratas e liberais não só para as eleições de 2022 como também para a aprovação de uma série de reformas propostas em sua campanha. Para as eleições do ano que vem, Daza evitou dizer se o mandatário terá que fazer novas alianças para garantir o pleito e disse que a “institucionalidade” não permite que Petro seja tão radical quanto gostaria.

“Não se fez uma revolução e é impossível fazê-la nesse marco da disputa institucional, submetida à Constituição, às leis, à regulamentação e ao controle das Cortes, da Corte Constitucional, do Conselho de Estado, da Procuradoria”, afirmou.

Daza entende que a eleição do primeiro presidente de esquerda foi possível pelo esforço não só de movimentos populares e organizações progressistas, mas também das guerrilhas que, há mais de 60 anos, lutam pela revolução armada na Colômbia. 

“Os 60 anos de luta armada acumularam o momento para chegar à presidência e, se não com maioria, ao menos com uma bancada capaz de disputar no Congresso. Avançamos na disputa de poder, produto não só da existência das guerrilhas, mas também do avanço do movimento social e alternativo democrático. As guerrilhas deram suporte a toda essa força que hoje se tem na Colômbia”, afirmou.

Leia a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato – Queria começar perguntando um pouco sobre a sua avaliação do que foi prometido: as propostas do governo Petro para uma reforma agrária no país. Qual é a sua avaliação sobre essa prometida reforma agrária? Foram passos importantes nos últimos três anos ou ficou aquém do esperado?

Robert Daza – Avançamos muito mais do que em governos anteriores. Os governos de Álvaro Uribe Vélez, Juan Manuel Santos e Iván Duque somam 20 anos de presidência. Nesses 20 anos, avançamos na entrega de 30 mil hectares aos camponeses e camponesas. Neste governo, que tem apenas três anos, já se superaram 500 mil hectares, dos quais cerca de 180 mil já têm título de propriedade e os outros 300 mil estão em trâmite. Temos, porém, uma dificuldade para avançar na reforma agrária, que são os instrumentos legais.

A Lei 160 e o Decreto 902 de 2017, que dão a base jurídica para fazer a reforma agrária — base para todos os trâmites para outorgar o direito à terra do governo ao campesinato — têm muitos problemas, sobretudo de burocracia. São extremamente morosos e trabalhosos. Por isso, as reformas agrárias se tornaram difíceis na Colômbia: inicia-se um processo de titulação de uma terra para os camponeses e, no meio do caminho, é preciso começar de novo porque não há tempo suficiente para cumprir todos os procedimentos e titular essa terra.

Este governo estabeleceu a meta de 3 milhões de hectares. Há pouco menos de meio ano, disse: “Bom, não vamos conseguir os 3 milhões”, e a meta foi modificada para 1,5 milhão. Já passamos de três anos e o que se avançou são 500 mil hectares. Isto é, não se vai cumprir nem mesmo a meta de 1,5 milhão de hectares.

O problema da reforma agrária é que, aqui na Colômbia, é necessário devolver e entregar ao campesinato, no mínimo, 15 milhões de hectares. No ritmo em que vamos, vamos demorar décadas para fazer a reforma agrária no país.

Por isso, desde o Congresso da República e de movimentos camponeses como o Coordenador Nacional Agrário (CNA), temos proposto uma lei de reforma agrária integral e popular que, junto com a Jurisdição Agrária Nacional — uma reforma constitucional, uma lei que cria os juízes e os tribunais agrários e que também lhes dá os procedimentos para titulação de terras, para esclarecer os limites dos imóveis, para esclarecer a propriedade dos “baldíos” (terras públicas) na Colômbia — permita avançar.

Junto com essa jurisdição agrária, precisamos de uma reforma agrária integral e popular para poder avançar mais rapidamente. Do contrário, vamos demorar muitas décadas. Para terminar, quero dizer que leis aprovadas no Congresso, como a Lei 160 de 1994, não foram feitas para realizar reforma agrária. Ao contrário, foi feita uma contrarreforma, porque, nesse marco, a terra se concentrou na Colômbia.

Lembremos que 1% dos proprietários no país tem mais de 80% da terra. O campesinato, que somos mais de 14 milhões de pessoas — cerca de 1,7 milhão de famílias —, temos menos terra do que os pecuaristas da Colômbia, organizados na Fedegan (sigla em espanhol para Federação Colombiano da Pecuária), por exemplo. Eles têm cerca de 35 milhões de hectares, enquanto as famílias camponesas não superam 1,3 milhão de hectares para produzir alimento. Daí que a reforma agrária é um tema muito atual e uma bandeira de luta que seguiremos erguendo tanto no movimento social quanto com essas vozes camponesas que chegam ao Congresso para conseguir, algum dia, que na Colômbia o direito à terra esteja nas mãos do campesinato.

O governo de Gustavo Petro já promoveu a reforma agrária, somando mais de 500 mil hectares, mas há dificuldades por causa dos instrumentos legais com a burocracia morosa e trabalhosa. Luis Acosta/AFP

Quais são as principais demandas nesse sentido da reforma agrária? 

Hoje, as mais de 1,7 mil famílias camponesas na Colômbia, que somos os produtores de alimentos, os que cuidam da água, protegem a diversidade biológica, garantem a diversidade e a identidade cultural do país. Estamos demandando, no mínimo, esses 15 milhões de hectares que foram propostos no programa do governo Petro. Recordemos que há um genocídio cometido contra o campesinato na Colômbia: pelo menos 10 milhões de vítimas, das quais, no mínimo, 8 milhões são camponeses e camponesas.

Somente no governo de Álvaro Uribe Vélez, nos oito anos, 2,5 milhões de pessoas foram deslocadas do campo para a cidade e, no mínimo, 4 milhões de hectares foram despojados dessas pessoas. Por isso, a necessidade da reforma agrária para devolver a terra a essas famílias camponesas. Mas não é apenas devolver a terra.

Quando dizemos reforma agrária integral e popular, quer dizer que, junto com a terra, o Estado colombiano deve garantir todos os apoios necessários à produção de alimentos. A soberania alimentar tem que se tornar realidade de mãos dadas com a reforma agrária. Isso significa, por exemplo, revisar os tratados de livre-comércio que abriram as portas à entrada de cereais. Antes da década de 1990, éramos autossuficientes na produção de cereais e até com potencial de exportação. Hoje, 97% dos cereais consumidos na Colômbia vêm de Estados Unidos, Canadá, Bolívia, Argentina e outros países. Essas políticas de TLC acabaram com a produção camponesa de cereais. Recuperar essa autossuficiência da produção de cereais é um objetivo da reforma agrária.

De mãos dadas com isso, têm que vir políticas de apoio à produção camponesa: apoio para produzir, comercializar, transformar — pelo campesinato —, o que implica fomentar e fortalecer a organização camponesa. Significa que o governo nacional, por meio do Ministério da Agricultura, deve garantir créditos para que as famílias camponesas possam produzir, deve garantir seguros de safra frente às mudanças climáticas, deve garantir seguro de preços dos alimentos, porque os camponeses produzem e, quando vão vender no mercado, perdem, pois os preços estão abaixo dos custos de produção.

Deve haver uma política de controle de preços dos alimentos que garanta preço justo ao produtor — o camponês — e ao consumidor, majoritariamente nas cidades. Na proposta de reforma integral e popular, propomos pelo menos sete elementos: (1) terra para o campesinato; (2) direito à terra para as mulheres e a juventude camponesa; (3) direito à governança do território — nos territórios camponeses, os camponeses devem ter o direito de decidir como ordenar o território, decidir se fazem ou não megaprojetos mineradores, de energia ou monocultivos; hoje, o campesinato já é reconhecido na Constituição como sujeito de direitos e de especial proteção; (4) direito a ser consultado para qualquer projeto em território camponês, reconhecido em lei e, por isso, propomos isso na lei de reforma agrária; (5) direito à tecnologia adequada e adaptada à produção camponesa; (6) medidas de proteção frente à mudança climática, que está afetando os ciclos produtivos e arruinando economias por excesso de chuvas ou de seca; (7) medidas de soberania alimentar pelos Estados no mundo que protejam a produção local, que garante a alimentação da população, porque mais de 70% da população é alimentada pelos camponeses, e essa produção deve ser protegida pelo Estado.

A reforma agrária não é somente acesso à terra. É garantir direitos a camponeses e camponesas que vivem nos territórios produzindo comida, e fazendo sua vida cultural, social, política e ambiental — o que se garante no Ato Legislativo 01/2023, que conseguimos aprovar no Congresso e que reconhece o campesinato como sujeito de direitos e de especial proteção. Quando um sujeito é de especial proteção, o Estado deve garantir medidas para protegê-lo.

Quais foram as principais conquistas nesse período de governo Petro?

Conseguimos, neste período de governo, o reconhecimento dos Territórios Camponeses Agroalimentares (Tecam). No Plano Nacional de Desenvolvimento, no artigo 359, fizemos esse reconhecimento, e depois gestionamos a expedição do Decreto Presidencial 0780 de 2024, que reconhece os Tecam e dá todo o procedimento para que as comunidades camponesas que vivem nesses territórios tenham o direito de se constituir como Tecam. O Tecam é a base organizativa para o reconhecimento do campesinato como sujeito de direitos de especial proteção e para fazer a reforma agrária, porque, justamente nesses territórios, essa população camponesa é a que precisa de terra, de proteger sua economia, sua cultura, sua forma de relacionamento, sua história, suas construções ancestrais e sociais, e também proteger o meio ambiente. Os Tecam assumem uma produção com enfoque agroecológico para produzir alimentos, cuidar da água e promover a biodiversidade.

Assim, os Tecam se transformam na base da garantia dos direitos dos camponeses no território. 

Qual a diferença em relação às Zonas de Reserva Camponesa? 

As Zonas de Reserva Camponesa foram pensadas em 1994 para atribuir território em zonas muito afastadas. Os Tecam podem ser constituídos na periferia das cidades, onde se produz comida e onde está a maioria da população camponesa. Temos acolhido e fomentado essa forma de territorialidade porque, além disso, é uma proposta de organização comunitária — não de uma matriz político-ideológica específica —, isto é, diversa. Em que o campesinato, diverso política, social e etnicamente, possa se constituir em Tecam com sua junta camponesa, seu plano de vida “Água e Dignidade Camponesa”, sua guarda camponesa e toda a força que, a partir da autonomia outorgada pelo direito de estar constituído como Tecam, permita fortalecer-se e dialogar diretamente com o governo sem intermediários, como costuma ocorrer para tramitar qualquer projeto produtivo.

Sob Petro, uma nova figura jurídica para proteção dos territórios camponeses foi criada: os Territórios Camponeses Agroalimentares (Tecam) – Coordinador Nacional Agrario | Coordinador Nacional Agrario

A violência no campo é uma das preocupações dos camponeses. Ameaças de paramilitares, disputa com o narcotráfico são alguns dos problemas enfrentados pelos camponeses colombianos. Como resolver essa situação nos próximos anos? A reforma agrária ajuda na redução da violência não só no campo, mas também a violência política?

Primeiro é preciso dizer que a violência na Colômbia é estrutural: não é apenas política, é social e cultural. A violência obedece também a uma formação escolar violenta que ensina crianças a competir como indivíduos e não a resolver problemas em comunidade. A violência é resultado da exclusão política por elites que sequestraram o poder e a governança do território e não deram possibilidade a setores sociais e comunitários de se organizarem, se expressarem politicamente e chegarem a espaços de decisão política.

A partir daí sofremos o problema da guerra — uma guerra desatada contra os camponeses. Quem a desatou? As oligarquias fascistas, conservadoras, ultraconservadoras que se acharam no direito de se apoderar das terras, expulsar camponeses e negar-lhes direitos. O campesinato passou a ser reconhecido na Constituição como sujeito de direito apenas neste período legislativo: 200 anos de governos anteriores negaram esse direito e esse enfoque diferencial. Há oligarquias e grupos poderosos que acreditavam que os camponeses eram escravos, apenas para a mão de obra, masculina e feminina. Trataram assim o campesinato. Não lhe deram oportunidade de estudar, crescer economicamente, empreender, desenvolver sua economia própria.

A violência vem dessas raízes. E enquanto não se erradicarem essas raízes — um Estado que reconheça os grupos excluídos como povos indígenas, afrodescendentes, comunidades camponesas e movimentos sociais —, a violência não acabará. 

E como tem se manifestado essa violência? Quais são as principais formas de expressão dessa violência, não só física, mas também simbólica?

Com grupos armados legais e ilegais, com leis que retiraram direitos dos grupos marginalizados, como os camponeses. Existem hoje grupos paramilitares, herdeiros do paramilitarismo. É mentira que o paramilitarismo acabou. Esses grupos armados funcionam para garantir grandes interesses econômicos: mineração, grandes geradoras de energia, latifundiários, grupos políticos de poder para chegar ao Congresso e à Presidência.

Há também grupos que restaram da desmobilização das Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], que hoje se autodenominam dissidências, reivindicam-se como guerrilheiros, mas atuam como grupos criminosos nos territórios. Recrutam crianças e jovens, treinam-nos e os devolvem às comunidades para serem seus olhos, saber quem vendeu a colheita, quem tem algum interesse econômico, para depois extorquir — cobrar a chamada “vacina”, a “cota”. São comportamentos paramilitares, profundamente comprometidos com o narcotráfico e a mineração ilegal. Esses grupos constrangem direitos de camponeses, não permitem a expressão autônoma das organizações sociais.

Deve haver ação do Estado — que não há. O Estado colombiano, inclusive este governo, tem sido incapaz de controlar esses grupos . E [deve haver] mobilização da população. A população tem se mobilizado, mas é trabalhoso porque há mortos, como os líderes sociais. Sem proteção estatal, comunidades camponesas e povos indígenas não poderão se levantar contra essa violência que só se aproveitam e submetem os grupos camponeses nos território.

Como essa violência afeta a vida dos camponeses? 

A vida dos camponeses é afetada porque não podem exercer seus projetos econômicos livremente: quando surge um projeto, ele é objeto de extorsão. Não podem exercer liderança social autônoma, porque esses grupos obrigam líderes a se colocar a seu serviço — se não, os matam ou expulsam do território. Também submetem as comunidades a economias ilegais, como cultivos de coca e mineração ilegal. Geram uma ilegalidade que impede lideranças e comunidades de, por exemplo, propor candidatos a conselhos municipais, prefeituras, câmaras ou Senado e obrigam a votar neste ou naquele, afetando a autonomia comunitária.

E a sua vida enquanto senador? Você sofre algum tipo de perseguição ou violência política por justamente ser uma liderança dos movimentos camponeses?

Eu sou, por exemplo, proibido de chegar a alguns territórios. Não posso ir ao território onde nasci, onde tenho família. Tenho que ficar em outros lugares. Se eu for à cordilheira nariñense, coloco em risco minha vida e a das pessoas que me acompanham. No Maciço Colombiano, onde moro, neste último ano começou a haver intervenção desses grupos armados, e a gente já se cuida para chegar lá, pois, se sequestram, a vida corre perigo. O nosso trabalho — ir aos territórios informar o que se está fazendo, fazer pedagogia sobre como funciona o governo e o Estado, quais são os direitos das pessoas, motivar organização, recolher necessidades — fica extremamente limitado. Ainda assim, estamos fazendo a tarefa por meio de porta-vozes que existem nesses territórios para não deixar a população desprotegida.

E qual a importância de um senador camponês hoje não só como porta-voz das demandas do campo, mas também como agente de luta política?

Precisamos de muitas mais cadeiras camponesas no Senado da República. Na Colômbia, são 100 cadeiras de circunscrição ordinária e duas indígenas, que são especiais. Reconhecemo-nos uma bancada camponesa de apenas cinco, dos quais efetivamente exercemos uma liderança camponesa com dois senadores. O campesinato precisa de muito mais cadeiras no Senado porque todas as transformações passam pelo Congresso. Por isso, o governo não pôde avançar em melhorar a saúde: caiu por falta de maiorias. Se o campesinato não eleger 10, 15, 20 vozes no Congresso, vai demorar muito mais para transformar o reconhecimento do campesinato como sujeito de direitos e de especial proteção em fato tangível — investimento na comunidade, reconhecimento do camponês na sua propriedade e na sua família.

Os povos indígenas, reconhecidos em 1991 e com várias vozes no Senado e na Câmara, tramitaram muitas leis: têm mais de 20 leis, não um ou dois artigos na Constituição, mas cerca de 16 que lhes reconhecem direitos, e mais de 40 decretos que regulamentam essas leis e artigos — transformando em institucionalidade e programas, isto é, orçamento, para que esses direitos sejam realmente atendidos. Precisamos de mais institucionalidade camponesa para educação, saúde, produção, mobilidade e estradas. Temos que criar, por exemplo, um instituto que cuide dos caminhos camponeses — isso é lei, instituição e orçamento. Com uma única cadeira camponesa, é muito difícil fazer essa tarefa nos prazos que precisamos. Passarão anos para conseguir essa meta.

Veja o senador Alberto Castilla: por mandato do Coordenador Nacional Agrário desde 2014, insistiu no reconhecimento do campesinato como sujeito de direitos e de especial proteção, com a reforma do artigo 64 da Constituição. Sete vezes negaram essa possibilidade, arquivando o projeto. Não houve força suficiente naquele momento. Conseguimos agora pela conjuntura. Fui abençoado por chegar como voz camponesa nesta conjuntura especial. Oito dias após a posse do governo, já tínhamos o projeto de reforma constitucional, e conseguimos aprová-lo nos primeiros meses. Se fôssemos apresentar hoje esse projeto, não conseguiríamos, porque o Congresso está majoritariamente com a oposição e vota contra todas as propostas do governo. Aproveitamos o momento, mas a questão não é aproveitar oportunidades, e sim garantir estrutura e maiorias no Congresso — decisão que só os próprios camponeses e camponesas podem tomar.

Como se deu as alianças com a direita nesse governo? Você acha que acabou se formando uma frente mais ampla do que foi imaginada ou o governo conseguiu manter uma linha progressista nesses três anos?

Creio que os movimentos sociais na Colômbia precisam fazer uma reflexão mais profunda e entender o que chamamos de disputa institucional. Eleger um presidente não resolve os problemas do país, porque o presidente não é autônomo: está em um marco constitucional e jurídico que não lhe permite, por vontade própria, fazer mudanças e reformas. O que deve fazer? Buscar alianças no cenário onde essas reformas se fazem. Porque o movimento social ainda não entendeu a necessidade de votar massivamente e impulsionar mais cadeiras no Senado e na Câmara para fazer maioria e tramitar reformas e transformações.

O problema é que, neste momento, para o governo Petro, partidos de direita o chantagearam para dar voto e passar algumas reformas — como a previdenciária e a trabalhista. A da saúde, não, porque é um negócio muito grande e não houve acordo. No Senado, de 108 cadeiras, somos apenas 20 do Pacto Histórico, cinco das Farc, uma indígena que vota com o governo e algumas do Partido Verde: não somamos 35. Trinta e cinco não faz quórum nem maioria para aprovar reforma. O governo tem de recorrer à velha prática politiqueira: dar cargos e projetos a senadores que não são de esquerda, porque não votam por consciência, votam por alguma entidade ou projeto que lhes deem. Assim administrou-se este governo no pouco que se avançou.

Também precisamos de consciência: temos 200 anos de governos de direita e ultradireita, funcionais ao modelo neoliberal, às transnacionais, aos banqueiros, aos grandes empresários. Todas as leis e funções do Estado foram colocadas em função de seus negócios. Refundar isso — reestruturar — não se faz em quatro anos. Passarão dois, três, quatro, cinco períodos presidenciais, com força no Congresso, para alcançar as conquistas desejadas.

Enquanto isso, a população também tem responsabilidade. Não é só eleger um presidente e esperar que ele seja mágico para fazer transformações — não fará. É preciso mobilização, controle e propostas da população para tramitar no Congresso, e, sobretudo, participação massiva nas urnas para eleger maiorias e fazer as reformas que resolvam problemas históricos demandados pelo movimento social.

Essa é a realidade na Colômbia. Petro não teve essa realidade, mas mostrou um caminho: que é possível direcionar o orçamento geral da nação para resolver problemas sociais. 

É inegável, por exemplo, que houve ampliação de cobertura na educação universitária: mais de 120 mil novos jovens ingressaram na universidade. O orçamento da educação quase duplicou em relação a governos anteriores. Há um recado do que este governo fez e do que é possível fazer como governo popular e democrático. 

O salário mínimo. Governos como o de Juan Manuel Santos, em oito anos, chegaram a aumentar em 18%. Este governo, em três anos, já aumento em 37% e com certeza chegará a 50% em quatro anos. Um governo que impulsiona a recuperação de direitos trabalhistas, com reforma trabalhista aprovada (ainda que recortada), e uma reforma previdenciária que concede direitos a uma população desprotegida. Uma proposta de saúde com equipes básicas indo a bairros e zonas rurais para promoção da saúde preventiva. Isso é decisão política que este governo tomou.

Não se fez uma revolução — impossível fazê-la nesse marco da disputa institucional, submetida à Constituição, às leis, à regulamentação e ao controle das Cortes, da Corte Constitucional, do Conselho de Estado, da Procuradoria, que também se atravessaram para dizer ao presidente: “Você não pode investir em La Guajira para resolver a fome das crianças”; “Você não pode destinar orçamento no Catatumbo para resolver o problema dos camponeses”. 

Essas transformações exigem que todos sigam para o mesmo lado. É preciso autocrítica e crítica positiva, para seguir adiante sem desconhecer o que se fez de transformação desde a chegada do presidente Petro.

Para Robert Daza, apesar dos avanços, o campesinato e os povos tradicionais não são proporcionalmente representandos no Congresso Nacional da Colômbia – Congresso da Colômbia | Congresso Colômbia

Outro assunto importante para a questão da segurança é a luta das guerrilhas. A Colômbia é hoje o único países da América Latina que tem guerrilhas de esquerda em armas, com uma visão revolucionária. O que isso representa para a política do país? Tem impacto sobre decisões políticas?

Creio que, de maneira majoritária, as guerrilhas já renunciaram à luta armada como forma de acesso ao poder. Por isso, os processos de desmobilização e de submissão ao Estado e à justiça. Na Colômbia, os grupos que sobrevivem se deixaram contaminar pela delinquência — narcotráfico, mineração ilegal, extorsão. Esses grupos de dissidências das Farc se dizem guerrilhas, mas atuam como grupos criminosos: não têm proposta de reivindicação de direitos para o país. Seguramente, o único grupo que ainda mantém ideologia — ainda que com práticas questionáveis no território — é o Exército de Libertação Nacional (ELN), em processo de negociação suspensa com o governo; ao que se escuta, tem uma proposta de mudança e de revolução.

Mas, daí a serem opção de poder neste momento, estamos muito longe, porque o país já se encaminhou para uma forma de transformação por meio da disputa institucional: eleições, Congresso, Presidência, governos estaduais, assembleias departamentais, prefeituras e conselhos municipais — todo esse exercício e a consolidação dessa proposta de mudança. 

Mas em 60 anos de luta armada, quais foram os resultados?

Creio que os 60 anos de luta armada acumularam o momento para chegar à Presidência e, se não com maioria, ao menos com uma bancada capaz de disputar no Congresso. Avançou-se na disputa de poder — produto não só da existência das guerrilhas, mas também do avanço do movimento social e alternativo democrático. Nesses 60 anos, as guerrilhas deram suporte a toda essa força que hoje se tem na Colômbia para esta situação de avanço político como atores no país, estando na Presidência e com uma porcentagem importante, se não majoritária, e, ao menos 30–40%, no Congresso, para começar a consolidar projetos de país e programas políticos propostos desde a década de 1960, como a reforma agrária, um tema que deu origem à luta armada no país.

Como você vê a Colômbia no futuro, nos próximos 10, 20 e até 50 anos do ponto de vista da reforma agrária?

Olhando para o futuro, mais além do ponto de vista camponês, vejo o país avançando nas transformações, com maturidade política e eleitoral, juntando-se para sustentar e avançar nesta mudança iniciada com este governo e estes períodos legislativos. Vejo o movimento social fazendo essa unidade entre o eleitoral e a mobilização social e política. Antes havia separação, hoje há mais aproximação com a bancada do Pacto Histórico, Comunes e outros partidos alternativos. Vejo consolidar-se essa unidade social e política como base para alcançar o sonho de um país em paz com justiça social, que garanta direitos de todas as populações.

Nesta conjuntura eleitoral, precisamos de mais cadeiras no Congresso. Se não for para ser maioria, ao menos ter um equilíbrio dinâmico que permita uma maioria real, uma força no Congresso que impeça que congressistas promovam uma extorsão do presidente para aprovar leis. Com equilíbrio dinâmico, as decisões terão de ser em democracia. Enquanto mantivermos essas discussões e avanços com respeito, aprendendo a fazer unidade na diversidade política, ideológica, social, conceitual e étnica, avançaremos até ser um fator de poder. No dia em que formos fator de poder, teremos o momento de fazer a revolução social e política no país.

Você vê a reforma agrária como algo possível?

Estamos fazendo o trabalho: gente camponesa organizando-se, mobilizando-se; o governo ajudando e apoiando o movimento camponês para que se organize e se forme para dar essa luta majoritária e massiva. Há liderança camponesa formada, mas precisamos avançar mais na formação da base camponesa. Uma base recebendo terras e colocando-as para produzir alimentos. Vejo que o movimento camponês deve fortalecer sua organização, mobilização e propostas, e estar de mãos dadas, vigilante, fazendo controle dos governantes — que são companheiros e companheiras —, apresentando ideias e criticando quando necessário. Assim, teremos força suficiente para aprovar uma reforma agrária integral e popular que forneça a base jurídica para realizá-la — o que daria sustento a uma paz estável e duradoura, a um desenvolvimento exponencial, à melhora da economia e da inclusão social, e a programas de reivindicação do que foi tirado e negado ao campesinato por governos anteriores.

Como está a disputa eleitoral para o ano que vem? Quem você entende que são os principais candidatos e a força do Pacto Histórico para 2026?

Quanto às eleições do ano que vem, parecem muito importantes para seguir o processo e ganhar também a Presidência. No âmbito do Pacto Histórico, há um exercício fundamental: escolher candidatos e candidatas ao Senado, à Câmara e à Presidência por decisão popular nas urnas. Não há controle de 100%, mas é o mecanismo mais democrático. Estamos obrigados a ajudar a controlar para que a votação seja real, sem intervenções de outros atores. Já não são grandes lideranças que dizem quem encabeça listas ou quem será candidato: é o povo que decide, entrega mandatos, agenda legislativa e programa de governo, e elege esses candidatos.

Por exemplo, para a lista ao Senado, inscreveram-se 248 para as 100 vagas da lista. Em 26 de outubro deste ano, teremos eleições. Os 100 da lista serão escolhidos em todo o país. Quem respondeu, quem fez o trabalho, terá reconhecimento nas urnas e estará nos primeiros lugares. Lideranças sociais que hoje não são senadores, mas ganharam reconhecimento, também estarão nos primeiros lugares e serão futuros senadores e senadoras — um mecanismo democrático de escolha. Isso cria segurança e controle dos eleitores, que é a população colombiana, e permite crescer e avançar. 

O mesmo será com as candidaturas à Presidência: já não será quem o Petro diga, mas quem o povo escolha. Hoje sabemos que há três candidaturas. Estou promovendo o candidato de esquerda, o senador Iván Cepeda. Vamos fazer campanha por ele, trabalhar dia e noite para que seja o próximo presidente, em reconhecimento ao seu exemplo de vida, coerência, atuação como senador, defensor dos direitos humanos e das vítimas, um dos melhores no Congresso.

Essas práticas de unidade e de escolha por participação dão força a todo esse movimento social e político para avançar e ter capacidade real de ser poder. Hoje somos governo — mais que governo, hoje somos Presidência da República —, e precisamos do poder na Colômbia para garantir direitos sociais, políticos e culturais como governantes neste país.

Fonte: Brasil De Fato / Editado por: Luís Indriunas

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