A fortaleza das urnas e o abismo da desinformação

Naquela terça-feira de maio, em uma sala onde a seriedade do rito judicial contrastava com a obstinação de um homem, Jair Bolsonaro, diante do Supremo Tribunal Federal, teimava em desferir seus já conhecidos ataques ao sistema eleitoral eletrônico. Com uma inflexibilidade quase pétrea, insistiu que a “desconfiança, suspeição ou crítica às urnas [eletrônicas] não é algo privativo” dele. Uma frase que, para além da defesa aparente, soava como uma tentativa de diluir a sua própria responsabilidade em um mar de incertezas coletivas. Na mesma tarde, o STF retomava o interrogatório dos réus no “núcleo crucial” da ação penal que apura a tentativa de golpe de Estado de 2022. E aqui reside o cerne da questão: a persistência quase mística com que Bolsonaro e seus seguidores se agarram a essa tese, repetidamente desmentida, não é um mero capricho. É uma estratégia calculada, pois a lenda da fraude nas urnas eletrônicas funciona como o bicho-papão predileto daqueles que, com olhos turvos de nostalgia autoritária, anseiam pela derrocada da democracia brasileira.

O empirismo e a astúcia

O conhecimento empírico, esse saber difuso que emana da experiência cotidiana, transforma uma vivência particular em uma regra inquestionável, em uma verdade inabalável. Derivado do grego empeiria, que significa experiência, esse saber popular, muitas vezes associado ao senso comum e, por vezes, desdenhado como vulgar, revela-se, paradoxalmente, um terreno fértil para a manipulação. É nesse espaço fluido que a extrema direita, com uma perícia digna dos mais sagazes ilusionistas, encontra as brechas para semear a desconfiança.
Veja, por exemplo, o cenário dos golpes digitais. Quase 41 milhões de brasileiros acima de 16 anos foram vítimas de crimes cibernéticos nos últimos doze meses, perdendo dinheiro em fraudes com cartões ou invasões de contas bancárias. Para o espírito menos crítico, a conclusão é quase instantânea: se há falhas em sistemas eletrônicos que envolvem dinheiro, por que não haveria nas urnas? Essa linha de raciocínio, embora falaciosa, cria uma ponte de aparente lógica entre a experiência pessoal de um golpe cibernético e a suposta vulnerabilidade do sistema eleitoral.

A estratégia da desinformação

A expressão “urnas eletrônicas” em si é um convite à confusão, gerando a falsa impressão de que esses aparelhos estariam conectados à vasta teia da internet. Uma falácia. Implantada em 1996 para infundir segurança e transparência, a urna eletrônica é um equipamento singular, projetado para operar de forma totalmente isolada. Ela não possui, em sua arquitetura, qualquer mecanismo que lhe permita conexão a redes de computadores, seja por fio ou sem fio. O sistema operacional que a rege é meticulosamente preparado pela Justiça Eleitoral, desprovido de qualquer software que possibilite o acesso remoto. As mídias empregadas na preparação e gravação dos resultados são blindadas por assinaturas digitais.
A segurança das urnas é inerente ao seu próprio processo de fabricação. O único cabo que ostentam é o de energia, e sua autonomia pode se estender por mais de dez horas, caso a eletricidade falte. Saem da fábrica inoperantes, e para que funcionem, procedimentos rigorosos, como a verificação da certificação digital, são indispensáveis. Argumentar, portanto, que um sistema que elegeu inúmeros políticos da própria base bolsonarista é fraudado “pela esquerda” é uma acrobacia retórica que desafia não só a razão, mas a própria realidade factual. É o ladrão, pego em flagrante, que aponta para a vítima e vocifera que ela é a verdadeira criminosa por não ter se deixado roubar.

Ameaça à Democracia

O Brasil, com um dos sistemas eleitorais mais robustos do mundo, viu nas urnas eletrônicas a solução para as fraudes que maculavam o processo desde o Império. Contudo, em clara dissonância com essa realidade, setores da ultradireita insistem em propagar narrativas infundadas sobre a suposta vulnerabilidade do sistema. O objetivo é transparente: criar uma “teoria-justificativa” para minar a confiança nas instituições, fragilizar a democracia e pavimentar o caminho para a ideia de que apenas um regime autoritário, um governo autocrático, seria capaz de resolver os intrincados problemas do país, como o desemprego ou o alto custo de vida.
A tese de que as urnas eletrônicas são suscetíveis a fraudes carece de qualquer fundamento. O processo de votação eletrônica é exaustivamente auditado em diversas etapas: antes, durante e depois dos pleitos. Testes públicos de segurança são realizados anualmente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde especialistas e representantes de partidos políticos podem tentar, por dias a fio, quebrar a segurança das urnas. Esses testes, que nunca resultaram em evidências de fraude, reforçam a integridade do sistema. O próprio TSE sempre se mostrou transparente, aberto a questionamentos, desde que fundamentados em evidências concretas.
Um exemplo contundente dessa desinformação ocorreu após as eleições de 2022. Um texto circulou alegando o “vazamento” de supostas mensagens entre um ministro do STF e um engenheiro da Oracle, “atestando” fraude. As investigações subsequentes revelaram a falsidade das mensagens, expondo dados incorretos e inconsistências grosseiras. É fundamental reiterar que as urnas eletrônicas sequer utilizam sistemas da Oracle e não estão conectadas à internet. Além disso, as urnas emitem boletins impressos em cada seção eleitoral após o fim da votação, documentos que ficam disponíveis publicamente para conferência, garantindo a transparência do processo.

Fatos contra a ilusão

A segurança do sistema eleitoral brasileiro foi exaustivamente comprovada por diversas entidades. Em 2022, o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Exército Brasileiro, entre outros, realizaram auditorias independentes e atestaram a integridade do processo eleitoral. O fato de que Jair Bolsonaro disputou seis eleições pelo sistema eletrônico, assumindo seus mandatos sem jamais questionar a legitimidade dos resultados até o momento em que lhe foi conveniente, é um desmentido categórico à narrativa de fraude. Se houvesse manipulação, tais resultados não seriam possíveis. A inconsistência é evidente: se o sistema é fraudulento a ponto de favorecer uma ideologia específica, por que elegeria tantos representantes da ideologia oposta?
A estratégia por trás dessa narrativa é insidiosa. Ao semear a desconfiança nas urnas eletrônicas, a ultradireita busca desacreditar todo o processo democrático. É uma forma de erodir a fé dos cidadãos nas eleições como instrumento legítimo de escolha de seus representantes e resolução de problemas, abrindo espaço para a proposta de “soluções” que fogem ao arcabouço democrático. A ideia é construir um consenso de que a democracia é ineficaz e que apenas um “homem forte” ou um governo autocrático poderia trazer a ordem e a prosperidade. A nostalgia de uma ordem antiga e difusa sempre foi a tábua de salvação dos reacionários.
A alegação de fraude nas urnas eletrônicas é tão absurda quanto um homem, após ser assaltado, acusar o céu de ser cúmplice. Ele argumentaria que, como “o céu estava azul e sereno”, obviamente colaborava com os criminosos, pois um céu “auditável” estaria chuvoso e tempestuoso para impedir o crime. Essa analogia, por mais estapafúrdia que pareça, ilustra a má-fé por trás da narrativa bolsonarista sobre as urnas eletrônicas.
É imperativo desmascarar, permanentemente, essas táticas. A defesa do Estado de Direito e a confiança nas instituições são pilares essenciais para a estabilidade e para o progresso social. As urnas eletrônicas brasileiras são um avanço tecnológico que trouxe transparência e segurança, e sua legitimidade é atestada por fatos, resultados auditados e a própria eleição de políticos de diversas matizes ideológicas. As narrativas bolsonaristas são, em sua essência, um ataque direto à inteligência do povo brasileiro, e o contraponto a elas reside na força inabalável dos fatos e na defesa intransigente da democracia e da lógica racional.
A clareza da verdade pode, por vezes, ser ofuscada pela persistência da mentira. E esse, infelizmente, não é o único argumento desprovidos de fatos circulando no debate público atual.

Chico Cavalcante é jornalista, escritor e consultor político

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