Bowie muda um

Dez anos depois, novos e antigos filhos e visões – como Lázaro

“Everything has changed

For in truth, it´s the beginning of nothing

and nothing has changed, everything has changed”

Slip Away, 2002

A imagem acima tem dez anos. A foto é de um ensaio do musical “Lazarus”, reciclagem de antigas canções e de “O Homem Que Caiu Na Terra”. David Bowie tinha 68 anos e câncer de fígado. Viveu mais sete meses. Vive em 2025? Nada mudou, tudo mudou.

“Seja qual for o Bowie que você amava ou ama, ele fazia você se sentir mais corajoso e livre”, decifra Rob Sheffield em seu livro “On Bowie”. As muitas transformações de Bowie se deram em um eixo permanentemente relevante, teoriza. Rob chama este eixo de “erotic loss”: a maneira como o coração segue sofrendo através de infinitas metamorfoses.

Sofrendo e me pergunto se não gozando, também. Mudar dói mas também pode divertir e até deleitar. Até que você morre e para de mudar. Ou não? Boa pergunta para Bowie, morto e vivo sempre em transição.

Vamos esclarecer que ele não foi “camaleão”. Não sobreviveu camuflando-se com as cores dominantes de seu ambiente e momento. Tomou caminho mais tortuoso. Captou, selecionou, roubou, recombinou e tornou seu o que ia encontrando de mais fresco, surpreendente, transformador em cada Era.

Rob Sheffield ungiu David “the greatest rockstar of all time”. Médio: foi rockstar e popstar simultaneamente. Passeou entre o rudimentar e o ambicioso, o apelativo e o transgressor. Almejou ser um artista completo, em que vida e obra e fama e fortuna seriam indissociáveis. Nisso suas referências eram mais plásticas e literárias que musicais: Duchamp, Dali, Picasso, os Beats.

A música se sustenta sozinha, sem virtuosismos como instrumentista ou cantor. Se fundamenta nas composições. Entre 1970 e 1980, Bowie gravou dez álbuns autorais com pelo menos quatro fases bastante distintas. Todos implausivelmente clássicos.

Não porque fizeram sucesso, nos confortam ou passaram a ser paisagem. Mas porque resistem a novas audições e interpretações e porque mudaram o que veio depois.

Suas roupas, atitudes, afetações, colaboradores, declarações e vida contaram tanto quanto suas canções. E transformaram suas canções. Tudo em Bowie ia mudando e íamos junto. Até em retrospecto, redescobrindo os vários Bowies do passado.

Três gerações conviveram com ele, de “Space Odissey” ao tiozinho ícone. Minha primeira memória é de “Sound And Vision” tocando na rádio AM, na infância. Meu primeiro contato consciente foi via “Ashes to Ashes”, vídeo que assisti fresquinho no programa “Som Pop”, TV Cultura, 1980.

Comecei pelo fim. Com esse disco, “Scary Monsters”, Bowie fechou sua era de ouro com chave de ouro. Descobri seus anos anteriores aos poucos, garimpando, celebrando cada nova pepita desenterrada.

Mas ninguém esquece seu primeiro Bowie e o meu é esse, pierrô lunar e hipnótico, vanguardista e auto-referente. Roubando de volta quem dele muito afanou: a molecada new romantic, batom & sintetizador, o som dos 80.

Depois Bowie teve mais sucesso e menos impacto. Seria absurdo exigir de sua meia-idade o ataque, ambição, argúcia de seus álbuns da juventude. Roqueiros não são como pintores ou escritores, que frequentemente melhoram com a idade. São prisioneiros do seu tempo.

E os fãs de rock talvez sejam assim também.

Aos 40 anos, 1987, Bowie reconheceu sua rendição: “faço rock para pessoas da minha geração”. A garotada quer música eletrônica e não rock – e isso é bom, disse ele.

Certo o mestre. Foi sempre assim. Rockstars falavam com sua geração e a imediatamente seguinte. David nasceu em 1947, só dezoito aninhos nos separam. Então nós que amávamos rock sonhávamos ser como ele e caras e minas como ele; só um pouco mais velhos, tão mais foda.

David Bowie seguiu mudando depois dos 40. Não para onde o mundo caminhava ou para a última onda do underground. Nem para onde sonhávamos, nós que esperávamos dele sempre tanto.

Os velhos fãs tentaram escutar com ouvidos generosos cada novo lançamento e movimento. Todos ficaram abaixo das nossas impossíveis expectativas. Até chegarmos à sua mais surpreendente encarnação: um respeitável gentleman e family man, compondo canções sóbrias e karaokando repertório.

Como o rock em geral no século 21, David Bowie parou de importar. Em retrospecto, talvez não tenha parado de importar-se.

David Bowie teve um ataque do coração em 2004. Nada convida a uma revisão das prioridades como uma angioplastia. Parou de gravar, excursionar e dar declarações. Depois pouco tocou ou apareceu em público.

Numa época que premia os que gritam alto cada intimidade e indignação, seu silêncio intrigava e ofendia. Demorou dez anos para retornar com “The Next Day”. Confrontado com um câncer de fígado terminal – cigarro? – aceitou o inevitável fazendo de seu adeus arte ambígua, perturbadora e integralmente bowiesca: “Blackstar”.

David sincronizou o lançamento de seu último trabalho com sua morte, possivelmente assistida, dois dias depois. Tinha 69 anos, dez de janeiro de 2016. Não houve funeral. As cinzas foram espalhadas em Bali. O defunto convida a novas interpretações, filtradas pela sensibilidade dos jovens de hoje. E dos coroas de hoje, também.

Revisitei recentemente seus discos da maturidade (ou podes chamar de velhice). Quando lançados descartei como impotentes. Hoje pesco ali perguntas e respostas inesperadas. “Ouvíamos Bowie para ouvirmos nós mesmos mudando”, diz Rob Sheffield.

Escuto principalmente o álbum “Heathen”, de onde tirei a citação lá no alto. Ele tinha 55 anos quando o compôs e gravou. Concedeu então uma de suas últimas entrevistas longas, para a revista “Interview”:

“É estonteante a dicotomia entre o tesão pela vida e o término de tudo… Quando você chega a uma certa idade, percebe que não está mais crescendo. A força do corpo está diminuindo. E você precisa permitir.”

Sou mais velho hoje que este David de “Heathen”, preocupado com a mortalidade e a desimportância. Também faço “rock para pessoas da minha geração”, sem um milionésimo do talento ou importância dele.

Mas de fato é muito confortável a interação com contemporâneos, pessoas um pouco mais velhas ou novas que a gente. Compartilhamos com elas tempos, utopias, ídolos, inimigos. É pra nós que escrevo.

Ninguém tem obrigação de ser amanhã a mesma pessoa que ontem. Mas depois de uma certa idade, é um puta trampo prestar atenção nas novidades e buscar os diálogos possíveis com o futuro. Pode ser prazeroso tentar – conforme a lua.

Próximos do começo do nada, o que temos para ensinar e aprender? Para quem, de quem, para quê? Como Lázaro, podemos reviver; o dia seguinte à ressurreição será mistério.

Ele é uma ideia, não um ideal: Bowie changes one.

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